Heresias e a quebra da unidade.
- Fernando San Gregorio
- 2 de ago. de 2020
- 6 min de leitura
As heresias dos primeiros séculos e suas mutações no decorrer da história são provas "sine qua non" quanto a formação do imaginário e consequentemente do raciocínio moderno a respeito do relativismo e sincretismo religioso.
As Escolas sectárias sempre tiveram um papel decisivo na apologética cristã exigindo manifestações e posições doutrinárias a respeito da fé.
"Heresia" palavra grega que pode ser entendida como escolha, segundo o dicionário bíblico Wycliffe é usado neste sentido na septuaginta, conforme afirma Raimundo de Oliveira "daí surgiu a palavra seita, por efeito de semântica", significa seccionar, dividir. Estes termos não eram usados em sentido depreciativo, apenas indicavam as diferentes escolas de pensamentos.
Porém podemos observar já na igreja primitiva seu uso como cisma ou rompimento à verdade ensinada pelos apóstolos, conforme a 2 carta de Pedro capítulo 2 versículos 1 a 3
“Assim como, no passado, surgiram falsos profetas entre o povo, da mesma forma, haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao cúmulo de negarem o Soberano que os resgatou, atraindo sobre si mesmos repentina destruição. Muitos seguirão seus falsos ensinos e práticas libertinas, e por causa dessas pessoas, haverá difamação contra o Caminho da Verdade...”
Assim, há uma heresia, ou seja, uma escolha resultando dai uma seita, homens que se separam dos outros e seguem seus próprios princípios, partido ou facção.
Este termo é comumente definido como uma divergência dentro da igreja devido a um ponto de vista diferente, definido como contrário à fé. Para caracterizar uma seita devemos posicioná-la sob os princípios bíblicos, como bem definiu Herman Dooyeweerd, estes princípios são; Criação, Queda e Redenção.
Pode-se usar deste crivo para a identificação e ou ramificação de uma seita. Se um ensino não está de acordo com as escrituras estamos diante de uma seita herética, uma escola de pensamento contrária à fé cristã.
Irineu de Lião
Irineu de Lião (130 - 202), tratou destas escolas em sua obra contra os heréticos denunciando a falsa gnose. Parece que foi o primeiro a tratar do assunto usando o termo gnosticismo 180 d.c. Irineu não tem só importância teórica proveniente de seu belo tratado, mas também por ter testemunhado várias destas escolas em andamento, ter participado e visto vários destes "mestres" antigos em atividade. Irineu então sabia do que estava falando como testemunha ocular de seu tempo se tornando fonte imprescindível para o estudo da gnose do primeiro século.
Irineu foi aprendiz com Policarpo que por sua vez fora discípulo direto do apóstolo João segundo uma tradição. Mas, por motivos talvez não tão conhecidos sua obra caiu em desuso já nos primeiros séculos sendo redescoberto somente no século XVI com Erasmo (1)
Primeira característica de sua oposição a gnose se diz da Unicidade criadora de Deus. Não há um demiurgo menor ou em oposição a Deus como em uma batalha cósmica entre a luz e as trevas entre o bem e o mal, onde Deus se estabelece aquém da criação está proveniente da manifestação "Eon-protoprincipio" de um deus produzindo a matéria elemento inerentemente mal e menor. Também fala da união do masculino e feminino em sua manifestação íntima.
Renúncia a todo apelo dos mistérios revelados a apenas alguns iniciados produzindo um conhecimento gnose de uma ascese espiritual e consequentemente uma libertação do espírito que fora aprisionado em sua cela abissal.
Gnose
Difícil rastrear e delinear a gnose e suas várias vertentes oriundas do contexto pagão, judaico e cristão dos primeiros séculos (2), não temos esta pretensão aqui, não obstante, destacar a visão dualista destas escolas e seu caráter soteriológico.
Dualismo
A posição dualista dos gnósticos para a explicação do mal no mundo e suas origens provenientes de um demiurgo que cria a matéria como um mal inerente, onde o "deus maior" e ou primordial fica aquém desta criação.
"Sother" - soteriologia
a visão soteriológica da "gnose" se traduz como o autoconhecimento que o homem deve ter de si para promover a ascensão da alma e seu retorno ao divino. Mas conhecimento "gnoses" reservado ou revelado apenas a alguns iniciados nos mistérios da gnose.
Entre inúmeras vertentes a respeito da visão gnóstica, é prudente ficarmos com apenas estes dois elementos no que concerne as origens da criação mas estritamente uma teologia e soteriológica quanto ao retorno ao divino libertando-se das limitações provenientes da matéria. porém estes dois elementos, podemos arriscar dizer como os pontos centrais das doutrinas que ofendem diretamente a Cristologia na negação da encarnação do Cristo e ou de sua divindade. Também da promoção salvífica do homem (Antropoteísmo (3)) mesmo através dos mistérios revelados, negando a obra redentora do cristo.
Vejamos um breve resumo destas escolas:
Maniqueísmo
Ensinada pelo profeta persa Maniqueu (216-274). Foi estruturado no dualismo gnóstico em um sincretismo religiosos oriundo do zoroastrismo, budismo e cristianismo, Maniqueu se dizia um profeta proveniente de uma tradição desde Adão. Se diziam também seguidores de Jesus. Mani como também foi conhecido entendia a realidade como o eterno conflito entre o bem (Deus) e o mal (diabo), fazia diferença entra a revelação veterotestamentário como proveniente do deus maligno e do neotestamentário como procedente de um deus totalmente bom. Nada menos do que Agostinho de Hipona seguiu esta seita por nove anos até sua conversão ao cristianismo por Ambrósio.
Ebionismo
Toda escola que nega a plena divindade de Jesus Cristo
Da gnose provém vários "braços" quanto ao entendimento da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo como afirma Heber Carlos Campos "Ebionismo, que é o nome técnico para a caracterização de toda negação da plena divindade de Jesus Cristo"(4)
Os judaizantes deram muita ênfase aos propósitos ebionitas no afã de guardar o monoteísmo. Não compreenderam a revelação a respeito de Jesus considerando-o como apenas uns dos grandes profetas. Muitos prosélitos cristãos não conseguiram se desvincularem da lei acabando por negar a divindade de Jesus. o apóstolo Paulo trabalha muito com esta questão. (5)
Arianismo
São Jerônimo lamentaria: “Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est — O mundo todo acordou em uma manhã, surpreendido e lamentando por descobrir-se ariano.”
Ario (250-336) foi presbítero da igreja de Alexandria no Egito. Negava a consubstancialidade de Cristo com o Pai, ou seja, afirmava que o Filho é menor que o Pai portanto uma criatura a mais excelsa dentre todas mas apenas uma criatura, Jesus mantinha uma posição intermediária entre Deus e os homens, um semi-deus o primeiro a ser criado por Deus e depois através dele foi criado o mundo.
As posições de Ario foram discutidas no sínodo de Antioquia no inicio do ano de 325 e logo em seguida no concílio de Nicéia onde fora condenado.
Docetismo
Toda escola que nega a plena humanidade de Jesus Cristo
Um problema teológico fundamental, como se deu a encarnação de Cristo, a pessoa divina suplantou a pessoa humana de Jesus ou a pessoa humana de Jesus foi divinizada na encarnação?. Com este pressupostos os docetistas negam a plena humanidade de Jesus, afirmavam que Jesus tem apenas aparência de homem, também segundo a gnose como pode um ser divino habitar a corporeidade uma vez que é matéria?
Marcionismo
Marcion (85-160) ensinava que Jesus apareceu de forma temporária como se fosse um "fantasma", parecia ter um corpo mas este não era real mas sim uma ilusão, negando a plena humanidade de Jesus Cristo.
Monofisismo
Êutiques (Séc. III) propagou o monofisismo que negava a união hipostática de Cristo, o dogma das duas naturezas de Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, negando assim a plena natureza humana de Jesus.
A história da igreja foi acompanhada de heresias, que por ignorância ou por malícia tentaram ofender a verdade, denegrir o verdadeiro cristianismo e abalar a fé de alguns. Ainda que nocivo e perigoso trouxe amadurecimento a homens sinceros, atentemos as palavras de Paulo.
"E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós". 1 Coríntios 11:18,19.
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1 - Irineu de Lião - Contra os Heréticos, pág. 18
2 - Para os interessados quero destacar o Livro Avicena - A viagem da Alma, parte II do livro a saber "Gnose e Hermetismo", com uma imprescindível introdução sobre o gnosticismo "gnoses", suas origens etimológicas, históricas e suas relações com o paganismo e cristianismo primitivo.
3 - Antropoteísmo, termo cunhado por Feuerbach, se diz do homem que se faz deus.
4 - As duas Naturezas do Redentor pág. 139
5 - "Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído". Gálatas 5:4
6 - As duas Naturezas do Redentor pág. 347
REFERÊNCIAS:
BOAZ, Antônio S. Patrística - Caminhos da Tradição Cristã, Editora Paulus, São Paulo, 2008.
PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. Avicena A Viagem da Alma, Editora Perspectiva, São Paulo, 2010.
Irineu de Lião. Contra as Heresias, Editora Paulus, São Paulo, 2008.
de Campos, Heber Carlos. A Pessoa de Cristo, as duas naturezas do Redentor, Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2004.
Raimundo de Oliveira - Seitas e Heresias, Editora CPAD 23ª edição 2002.
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