Do Hedonismo Antigo ao Materialismo Moderno: Redescobrindo o Ser em um Mundo Obcecado pelo Ter.
- Fernando San Gregorio
- 17 de dez. de 2024
- 6 min de leitura

O homem moderno enfrenta inúmeras questões que atravessam suas expectativas, anseios, preocupações cotidianas e sua posição no mundo. Como alcançar o sucesso? Quanto é necessário para garantir uma vida estável e sem preocupações? Qual o papel da situação social e da produção em massa na acumulação de riquezas? Ao mesmo tempo, surgem temas como a espiritualidade e sua abordagem holística, o anseio por igualdade e a ampliação da diversidade.
O Hedonismo
O hedonismo ensina que fugir da dor e buscar o prazer é o modo pelo qual o homem pode alcançar sua felicidade a “eudaimonia”. Epicuro foi um dos representantes mais importantes desta escola, mas vale observar que Epicuro não ensinava que o prazer vil atingia a felicidade, mas que este prazer mensurado pela razão produzia uma paz duradoura um prazer da alma, deste modo controlando as consequências do prazer imediato e da dor para alcançar algo duradouro.
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Epicuro (Nasceu em 341 a.C., na ilha de Samos, uma colônia grega próxima à costa da Ásia Menor (atual Turquia). - Morreu em 270 a.C., aos 71 anos, em Atenas, onde liderava sua escola filosófica, o Jardim de Epicuro.)
Talvez foi com os cirenaicos na figura de Arístipo de Cirene que o hedonismo ganhou a conotação que conhecemos hoje a respeito do prazer positivo e imediato como remédio para a alma.
Arístipo de Cirene (Nasceu por volta de 435 a.C. em Cirene, uma colônia grega localizada na atual Líbia. - Morreu por volta de 356 a.C., aos 79 anos. Sua vida abrangeu o período clássico da Grécia.)
O Hedonismo moderno
"Você está vivendo para fugir da dor ou para alcançar um prazer verdadeiro?"
A rapidez com que os dias atuais transcorrem, marcada por um fazer incessante, gera malefícios tanto psicológicos quanto corporais, frequentemente culminando em doenças psicossomáticas. A paz e o prazer já não são buscados na “ataraxia” — a imperturbabilidade da alma —, mas em uma constante busca por reconhecimento social.
A fuga das dores tem sido amplamente observada ao uso excessivo de analgésicos e drogas ilícitas, cujos efeitos, a longo prazo, resultam em distúrbios, rupturas e decepções emocionais. O diagnóstico nos aponta para uma sociedade sem limites, onde o prazer momentâneo se torna uma das principais causas de ansiedade e desordem. "Por que o vazio interior persiste, mesmo com tantos bens materiais?"
"Por que o vazio interior persiste, mesmo com tantos bens materiais?"
O ter e não o Ser.
Com uma visão amplamente materialista, o mundo moderno se empenha cada vez mais na aquisição de bens e na construção de sistemas que promovam a adequação e o consumo eficiente desses recursos. Esse movimento, no entanto, leva o homem a uma subversão de sua própria natureza. "Seu propósito está no que você possui ou no que você é?" A busca incessante pelos bens de consumo e pela epopeia de "ter cada vez mais" suprime o elemento primordial do homem enquanto ser.
"Seu propósito está no que você possui ou no que você é?"
O homem, uma criatura criada à imagem e semelhança de Deus, encontra seu verdadeiro propósito não no "ter", mas no "ser". É ao priorizar o "ser" que ele possibilita o crescimento espiritual, a elevação como filho de Deus e sua preparação para uma esfera espiritual superior: o amor.
O materialismo, ao longo do tempo, moldou uma sociedade hedonista, emergente, egoísta e histérica. A influência desse modo de enxergar o mundo é tão marcante e poderosa que até mesmo aqueles que se dedicam às coisas do espírito, em algumas ocasiões, acabam sendo seduzidos por suas vertentes.
Essa inversão de valores acontece quando o ser humano se deixa conduzir por uma perspectiva materialista da existência, negligenciando sua dignidade e sua elevada vocação espiritual.
Niebuhr, em sua obra "A Natureza e o Destino do Homem", aborda o conflito entre a natureza humana caída e a tentação de encontrar segurança em coisas materiais (o ter) em vez de em Deus (o ser). Ele sugere que o pecado da humanidade está profundamente ligado ao orgulho e à cobiça, que são expressões do desejo de possuir e dominar.
Niebuhr escreve:
"O homem, ao buscar segurança nas coisas criadas, esquece-se de sua dependência de Deus e se torna escravo de sua própria vontade de possuir."
Ele conecta essa visão à idolatria moderna do materialismo, que ele entende como um afastamento do verdadeiro propósito do homem: ser à imagem de Deus e viver em comunhão com Ele.
O teólogo e sociólogo protestante francês Jacques Ellul abordou extensivamente o tema em obras como "A Subversão do Cristianismo" e "O Sistema Técnico". Ellul denuncia a sociedade moderna como profundamente tecnocrática e consumista, onde o ter domina completamente o ser.
Ellul observa que:
"A sociedade moderna transformou o ter em um ídolo, onde o valor humano é medido não pelo caráter ou pela espiritualidade, mas pelo que se possui. O cristianismo, em sua essência, é uma rejeição dessa idolatria."
Para Ellul, o cristão é chamado a resistir ao consumismo e à obsessão pelo acúmulo de bens, vivendo uma vida centrada no relacionamento com Deus e no serviço ao próximo.
Richard Foster, autor de Celebração da Disciplina, também trabalha com essa tensão entre o ter e o ser. Foster aborda o consumismo e a necessidade de simplicidade como práticas espirituais para recuperar o que realmente importa na vida cristã.
No livro "A Simplicidade: O Caminho do Contentamento", Foster escreve:
"A busca incessante por posses é uma distração do que realmente nos preenche: ser moldados à imagem de Cristo. A simplicidade nos ajuda a abandonar a escravidão do ter e a viver na liberdade do ser."
Ele incentiva os cristãos a rejeitarem a mentalidade de consumo e adotarem um estilo de vida de simplicidade como forma de experimentar maior intimidade com Deus e comunhão com os outros.
John Stott, um dos mais importantes teólogos evangélicos do século XX, abordou temas relacionados ao ter e ao ser em suas obras sobre discipulado e ética cristã, como A Contra-Cultura Cristã. Comentando o Sermão do Monte, Stott critica o materialismo e a obsessão por riquezas, enfatizando que a identidade cristã está enraizada no ser em Cristo, e não no acúmulo de bens.
Stott observa que:
"O materialismo é uma forma de idolatria. Quando o homem se define pelo que possui, perde de vista o que realmente é aos olhos de Deus: uma criatura amada, chamada à comunhão com Ele."
Como vimos, a essência fundamental do cristianismo é a simplicidade, baseada em uma vida de piedade e em uma busca genuína por Deus, que se dá por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. A comunidade evangélica precisa estar atenta para não se enganar quanto aos verdadeiros aspectos do Reino: humildade e magnanimidade. Os caminhos opostos, frequentemente, levam à soberba. Entendam, não se trata de uma apologia ao "não ter", mas de refletir sobre qual é o nosso tesouro, pois onde ele estiver, ali também estará o nosso coração.
Embora seja importante para a identidade de cada indivíduo e, em certa medida, legítimo e saudável a implantação de projetos e a promoção estrutural para uma vida boa e bem-sucedida, permitindo que cada um de nós se sinta bem estabelecido na sociedade em que vive, a verdade é que esses aspectos são secundários quando falamos de uma vida plena de disciplina e imitação de nosso Senhor.
Este quadro psicológico é oriundo de alguns elementos que devem ser destacados.
A diligência ou cuidados excessivos pelas coisas temporais tendem a absorver toda força e tempo em demasia, acarretando a diminuição dos cuidados da alma para com as coisas espirituais;
isso se dá porque após a queda, o homem sentiu a necessidade iminente e imediata de um cuidado por si, ocasionado pela angústia e solidão no distanciamento de Deus. O medo iminente da morte que o acompanha o torna ansioso pelos cuidados.
Ainda que assim tenha ocorrido, Deus provê ao homem em todos os aspectos no que concerne sua natureza, mas em primeiro cobre sua vergonha;
ocasionada pela sua nudez;
como um tipo do Cristo que haveria de vir para o salvaguardar com vida!
Portanto, o hedonismo e o materialismo modernos superam as expectativas até mesmo de um passado longínquo. Certamente, não podemos reduzir o homem e sua estrutura à posse e ao ter, o que acarretaria na reificação da sociedade e na escravização tanto do servo quanto do senhor. Nesse sentido, a reificação manifesta-se como a transformação das pessoas em meros objetos.
É evidente que, no acúmulo de posses, a reificação se torna um elemento sedutor na alta sociedade. Não obstante, a falta de meios para a aquisição de bens também traz à tona, mais uma vez, esse fenômeno. Ora, o pensamento de que as pessoas nos pertencem, sendo tratadas como objetos de uso, revela uma grave desumanização.
A ruptura mencionada, acompanhada pela solidão radical e pelo medo iminente da morte, traz à alma um desejo irresistível de fugir da dor e de se entregar aos prazeres. Os cirenaicos, os epicuristas (em menor medida), os céticos e, finalmente, os materialistas, deixaram-nos esse legado.
A ansiedade e os traumas recorrentes na sociedade têm raízes nessas fontes: espirituais, culturais e no abandono do ser.
O cristianismo, em sua essência, opõe-se a essa idolatria.
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